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Foi com a ideia de discutir questões ligadas à saúde, à sexualidade e à comunicação que os antigos integrantes do Gapa (Grupo de Apoio às Pessoas com Aids) decidiram fundar a Somos há cerca de uma década, em Porto Alegre. Hoje, a ONG já soma inúmeros projetos de conscientização em relação a questões LGBTs e de saúde. Um deles é o Projeto Transviados, por exemplo, que promoveu oficinas artísticas com a temática saúde e sexualidade.

 

Recentemente, a Somos realizou um trabalho de aproximação com jovens na Restinga. A ideia, que teve apoio da Secretaria Municipal de Saúde, era falar sobre sexo e prevenção sem tabus. Com a ajuda dos integrantes das escolas locais, eles transformaram letras de funks conhecidos em frases como “E pira neles e pira nelas/ e se for de camisinhas/ vai com eles, vai com elas”.

 

Nesta entrevista, Sandro Ka, integrante da ONG, alerta para a importância da volta do vírus HIV/Aids na pauta da mídia e das campanhas governamentais. Segundo a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), grupos cujas práticas sexuais são discriminadas, como gays, lésbicas, travestis e transexuais, merecem uma maior atenção à proteção de sua saúde e dos direitos humanos. A Abia também destaca que faltam estudos sobre a magnitude da epidemia entre as pessoas trans, e que há carências em relação a uma política nacional consistente de prevenção e de tratamento das DSTs, opinião muito defendida por Sandro nesta entrevista.

 

 

 

HIV e a militância

 

 entrevista com Sandro Ka, integrante da ONG SOMOS - Comunicação, Saúde e Sexualidade

Sandro Ka (foto: ONG SOMOS/divulgação)

Porto Alegre é a cidade com maior incidência de HIV no país, com 99,8 casos a cada 100 mil habitantes. Na região sul, existem 28,8 casos para 100 mil habitantes. Como isso pode ser explicado?

 

Existem algumas hipóteses. Uma é a especificidade do vírus daqui, que seria um pouco mais resistente. Também tem a questão de que [o vírus] é identificado, mas as pessoas não são absorvidas pelo sistema [de saúde]. Isso é um grande problema aqui.

 

 

Algumas regiões do município têm índices alarmante de incidência, chegando aos 100 casos por 100 mil habitantes. Por quê?

 

Há uma hipótese de que [nessas regiões] se concentram várias questões, de pobreza, de preconceito racial, que impactam na falta de acesso. Tudo isso ajuda no agravamento dos índices da epidemia. As pessoas são excluídas do sistema. Se a pessoa é negra, se é pobre, se é LGBT, já sofre uma outra gama de preconceitos.

Sandro Ka fala sobre as campanhas de prevenção do HIV

A qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV/Aids tem melhorado consideravelmente. De que forma isso afeta no número de novos casos?

 

A temática da Aids e da prevenção está muito distante das pessoas. Diferentemente dos anos 80 e 90, em que havia a questão massiva de informar na mídia, da importância do preservativo, hoje a gente quase não vê. As campanhas estão cada vez mais raras, mais atreladas a datas pontuais, como o carnaval - como se as pessoas só tivessem relações sexuais nesse momento. Por outro lado, tem uma melhoria nas condições de acesso à saúde e de medicação. Antes, a Aids era uma morte iminente, porque os poucos e raros medicamentos tinham que vir de outros países. O coquetel demorou um pouco para chegar integralmente ao Brasil, e hoje isso é muito mais fácil. Isso gera um descanso governamental de “ah, não é uma coisa tão perigosa”. Isso é um problema, porque conforme vai saindo da pauta, os mais jovens não conseguem associar essas questões de vida. A Aids é uma epidemia generalizada e cultural, porque não é só da área da saúde. A maior parte das infecções é via sexual, e o sexo é um tabu. Por isso, é mais importante que ela volte à pauta e volte com força.

“A Aids é geral e disseminada, pode acontecer com qualquer pessoa. Não tem gênero, raça nem classe social.”

 

Deu um cansaço nessa coisa de “use camisinha, use camisinha”. Tá na boca do povo, mas nas suas práticas cotidianas, as pessoas usam formas diversas de prevenção, ou tem namoros mais estáveis e fazem acordos diferentes. Hoje, se investe em novas tecnologias de prevenção, de medicamentos preventivos. Existem outras estratégias além da camisinha que hoje são consideradas válidas, mas não são acessíveis por questões morais. É a mesma questão do aborto, tem pessoas que dizem que, se descriminalizar, todas as mulheres vão abortar. Não é assim, isso é um trauma pro corpo, pra cabeça, passa por escolhas.

 

E no sistema educacional?

 

Como é um assunto que passa pela sexualidade, ele acaba sendo um tabu também, ou quando passa dentro do cotidiano escolar, é dentro de uma disciplina. Na maioria das vezes, quando aparece, é ainda uma abordagem muito pesada, muito punitiva. A ideia é que questões de prevenção e de saúde sexual sejam tratadas de um modo muito tranquilo e que não tenha hora pra isso acontecer. O importante é que haja conversas mais livres, com menos tabus. Tem uma colega nossa que fala que quando a vida bate na escola, a escola manda embora. Quando a guria engravida, quando o aluno descobre drogas, aí é um problema pra escola, e ela não quer saber. A escola ainda vive um faz de conta.

“Tem uma colega nossa que fala que quando a vida bate na escola, a escola manda embora”

 

Ainda há um estigma muito forte na população LGBT quanto aos casos de contaminação?

 

A primeira coisa, que é urgente, é que a pauta volte com peso para os espaços governamentais, que se invista massivamente em prevenção, porque quando passa a fazer parte do cotidiano, o assunto se dissemina e deixa de ser um tabu. O assunto da Aids precisa ser discutido fortemente, constantemente e de formas diferentes, para que as pessoas possam associar às suas vidas. As pessoas exercem suas sexualidades de várias formas, então é importante que as pessoas possam se apropriar desses discursos com maior legitimidade.

As pessoas que fundaram o Somos saíram do Gapa e do movimento LGBT de Porto Alegre. A ideia era desde o início discutir questões de saúde, sexualidade e comunicação. Dentro da população LGBT, tem um recorte de gays, travestis e transexuais, que são populações muito vulneráveis à epidemia, por conta da homofobia, da intolerância e do difícil acesso à saúde.

Sandro Ka fala sobre a Série Diálogos

O governo faz esse trabalho de adaptar o discurso para a população vulnerável?

 

Na hora de colocar em prática, é muito frágil. Principalmente o governo federal, que já teve um programa de Aids super reconhecido mundialmente, desenvolve vários planos de enfrentamento pra populações específicas, pras mulheres, pra LGBTs, que são desenvolvidos na base, mas na hora de pôr em prática, tem outras prioridades, que são atravessadas por valores moralistas, conservadores. Então, dificilmente se põem em prática questões super relevantes. Por exemplo: já é um absurdo que boa parte da energia das campanhas de prevenção do governo federal aconteçam só em datas específicas, e uma delas é o Carnaval. Dentre as peças gráficas, uma é com homens gays. Esta é a peça que é boicotada. Tem um investimento de energia com a sociedade civil, de identificar quais são as necessidades da população, tem o investimento financeiro, de contratar uma agência pra fazer a peça (publicitária), e ela é boicotada. É a que menos aparece, a que não passa no VT no horário nobre da TV… Então tem vários atravessamentos sutis.

Panfletos da ONG SOMOS (foto: Thaís Bueno Seganfredo)

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